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The Baggios: O medo do medo de sentir medo

A trajetória da banda revela a coragem e a disposição para disseminar sua música – e serem indicados ao Grammy


por Alisson Mota e Marcel Melo

publicado originalmente na Revista Rever, em setembro de 2017


Foto: Alisson Mota

Em Sergipe, a notícia da indicação de “Brutown” (Toca Discos, 2016) ao prêmio de melhor álbum de rock ou música alternativa em língua portuguesa do Grammy Latino gerou repercussão e, sobretudo, surpresa. Até então, nenhum artista sergipano havia sido indicado à premiação criada em 2000 pela Academia Latina de Gravação, que tem como escopo o mercado americano de música nas línguas espanhola e portuguesa.


Entre os indicados junto ao duo – agora trio – sergipano, estão velhos conhecidos do grande público, como Nando Reis, com o disco “Jardim-Pomar” (Relicário, 2016) e os veteranos da grupo carioca Blitz, com “Aventuras II” (Deck, 2016). A lista conta também com nomes de peso da música contemporânea – e independente – do Brasil: o projeto do paulistano Luciano Nakata, o Curumin, com o disco “Boca” (Natura Musical, 2017) e aos também paulistanos do Metá-Metá, representados pelo álbum “MM3” (Jazz Village, 2016). A cerimônia de premiação está prevista para o dia 16 de novembro, em Las Vegas, onde os Baggios, junto ao Trio Nordestino e a dupla Simone & Simaria, serão os únicos representantes do Nordeste brasileiro.


Quando a indicação ao prêmio foi anunciada, a banda estava em Nova York, finalizando uma série de oito shows na América do Norte, entre Montreal, no Canadá, Washington D.C., Pittsburgh e Nova York, nos Estados Unidos, com shows em casas como a Knitting Factory, onde já se apresentaram nomes como Lou Reed, Jeff Buckley e The Mars Volta. No dia da indicação, eles gravaram um vídeo às margens do rio Hudson comentando a conquista, que está entre os maiores feitos da banda até então.


Na volta para Aracaju, concederam entrevistas aos diversos veículos de comunicação do estado, que geralmente não abrem espaço para uma maior divulgação da nova música que é feita em Sergipe fora do circuito mainstream do sertanejo e do forró.  No dia seguinte à volta para casa, participaram do telejornal local de maior audiência no estado, dentre outras entrevistas no decorrer da semana, inclusive a que deu origem a esta reportagem.


Encontramos com Julio Andrade (Julico) e Gabriel Carvalho (Perninha) na Reciclaria, onde houve a última apresentação da Baggios em Aracaju – lotada, diga-se de passagem – antes da turnê na América do Norte e contou com participações de artistas da cena aracajuana como Alex Sant’anna, Patrícia Polayne e a lendária Joésia Ramos.

Foto: Alisson Mota

O medo do disco – o processo de produção de “Brutown”


O álbum foi gravado em cerca de duas semanas, no estúdio Toca do Bandido, no Rio de Janeiro, por onde já passaram nomes como O Rappa e Raimundos.  O processo de gravação se deu de forma intensiva, onde os músicos ficaram confinados durante esse tempo, convivendo o cotidiano no estúdio, o que, segundo a banda, foi importante para o aclamado resultado final. “O estúdio possibilita que você vivencie mais todo o projeto, numa experiência de imersão […] e conseguimos experimentar guitarras e pedais diferentes, que eu nunca tinha usado”, pontua o guitarrista e vocalista Julico, que credita a realização do álbum ao produtor Felipe Rodarte e à proprietária do estúdio, Constança Scofield: “eles facilitaram na parte dos custos […] entrando como parceiros de selo”.


O álbum conta com várias participações de músicos sergipanos e de nomes de destaque na cena nacional. Jorge du Peixe (Nação Zumbi), Fernando Catatau (Cidadão Instigado), Emmily Barreto (Far From Alaska), Gabriel Thomaz e Érika Martins (Autoramas) são alguns dos colaboradores do disco, cujas participações são bem expressas nas músicas, a exemplo de “Saruê”, que conta com a participação de Jorge du Peixe e tem uma pegada em afinidade com o som da Nação Zumbi.


As participações foram todas planejadas e as músicas foram selecionadas de forma a se encaixarem no perfil dos colaboradores, sendo, em quase sua totalidade, gravadas à distância e incorporadas às composições de Julico e Perninha. “Os únicos que gravaram no estúdio com a gente foram o Gabriel [Thomaz] do Autoramas e Felipe [Ventura] do Baleia, que tocou violino […]. Seria ideal se  tivesse todo mundo lá, se todas as agendas batessem (risos)… É impossível”, brinca Perninha. Outra participação importante no álbum é a do guitarrista da banda recifense de punk Devotos, Neilton Carvalho, desenvolvendo a arte gráfica para o projeto, que traduz bem o espírito e o conceito de Brutown: a metrópole-fantasma, árida e cercada de conflitos.


O medo da mistura – influências e conceitos


No documentário produzido em 2011, que retrata a turnê de lançamento do primeiro álbum – The Baggios (Vigilante, 2011) – pelo Nordeste, há uma cena onde os dois integrantes estão garimpando discos. Nesse momento, Perninha pega o disco do Sex Pistols, “Nevermind The Bollocks” e Julico vai direto para “O Dia em Que a Terra Parou”, de Raul Seixas. “Raul é um cara que me encoraja muito a compor em português e foi através dele que eu comecei a querer misturar mais, enxergando a música como um mix de vários elementos”, confessa Julico.


Na música da The Baggios, é evidente a evolução na sonoridade do conjunto. Desde o primeiro EP, lançado em 2006 (ainda com Elvis Boamorte nas baquetas), o som se caracterizava por um rock cru e pesado, mas misturando com vários elementos locais, principalmente em relação à lírica. Mas foi depois do primeiro disco, com a concepção de “Sina”, que foi lançado em 2013, que a banda teve uma primeira mudança mais significativa na sonoridade dos registros.


“No Sina, eu lembro que a música que me deixou mais ‘cabreiro’ foi ‘Salomé Me Disse’, que é um baião. Eu tava muito com aquela cabeça no rock, mas ao mesmo tempo eu olhava pro rock brasileiro e queria fazer algo diferente daquilo. Daí eu sempre fui muito preso aos riffs, mas depois entrei pelo viés da melodia”. O resultado são arranjos mais elaborados, um sentimento nostálgico provocado pela presença da sanfona em algumas músicas, além de baladas como “Domingo”.


Em “Brutown”, há maiores mudanças, com a incorporação dos teclados. As músicas ganharam mais peso e volume, sendo mais complexas e abusando das referências. Assim, o álbum conta com músicas como “Vivo Pra Mim”, com uma melodia muito próxima ao funk setentista, e “Medo”, uma canção que parece ter sido composta por Alceu Valença nos tempos de “Molhado de Suor”.


Movidos pela inovação, no último álbum, as referências da MPB se sobressaíram muito por conta do contato com as músicas de artistas como Belchior e Alceu, quando a banda gravou tributos a esses artistas, como a versão para “Todo Sujo de Batom” de Belchior em 2014, e a explosiva “Vou Danado pra Catende”, de Alceu, no ano passado. Esta foi apresentada durante o carnaval de Recife num show arrebatador na edição 2017 do festival Rec-Beat e costuma fazer parte do repertório dos shows.


Julico fala que a The Baggios hoje é uma banda de música, não necessariamente só de rock. A diferença na sonoridade e estrutura das músicas revela bem isso e ajuda a dirimir as exaustivas comparações com outros duos do rock, como The Black Keys e White Stripes. A construção mais complexa é fruto da adoção da melodia enquanto norteadora das composições, proporcionada pela música popular brasileira. “Tem uma música do Sina, ‘Tardes Amenas’, que é uma música bem Jorge Ben. Se eu pegar um violão e colocar o suingue de Ben, você vai ver que fica uma coisa bem parecida”, comenta o guitarrista.

Foto: Alisson Mota

O medo da mudança – tem mais um na banda!


Desde o início da The Baggios em 2004, a banda era composta de dois membros, onde o único que está desde o começo é Julico. O guitarrista e vocalista foi acompanhado, na fase embrionária, por Lucas Araújo, que se mudou para a Suíça e foi substituído por Elvis Boamorte, que quando assumiu as baquetas mal sabia tocar bateria. E foi em 2008 que Gabriel Perninha entrou, ainda com 16 anos na época.


Quando do início das composições do “Brutown”, a ideia era continuar compondo como duo. “Foram geradas algumas demos de uma forma bem crua e foi aí que eu senti a necessidade de outro elemento para somar às minhas ideias de arranjos e até para mudar o formato da banda e das composições. Depois do DVD de 10 anos da banda, sentimos que a banda encerrava um ciclo”, fala Julico, que convidou o tecladista Rafael Ramos a se incorporar ao grupo, dando conta das teclas, do sintetizador e do baixo, que também é tocado no teclado, como o Ray Manzarek fez no The Doors. “Acho que fez toda a diferença […] ainda que nesse disco não rolou de compor do início com ele, mas tem o toque dele, a pegada, os arranjos e as ideias… Acho que mudou totalmente, nos deu mais liberdade […] até pra cantar, solar, a gente não precisa ficar segurando uma base e dá até pra fazer algumas jams”, fala Perninha sobre a contribuição de Rafael na cozinha da banda.


A The Baggios sempre teve relativa facilidade em relação às outras bandas no quesito logística dos shows, pois por serem só dois, havia certa facilidade em relação ao transporte, hospedagem e aos custos. Hoje, com o formato em trio, a situação mudou um pouco de figura. “Quando a gente começou a viajar, a melhor coisa foi estar só em dois mesmo, porque lá as condições não eram lá das melhores e a gente ficava em qualquer lugar, qualquer casa de amigo. Com três já dificulta”, ressalta Perninha. “Na hora da viagem é um a mais, mas foi um a mais na hora certa, pois foi quando a gente teve um pouco mais de condição e recursos”, lembra Julico.

Foto: Alisson Mota

O medo da estrada – espalhando a música da banda


Por ser uma banda independente, sempre precisou correr atrás de gravar os próprios discos, pagos do bolso dos músicos, e criar alternativas logísticas para possibilitar as turnês de divulgação dos trabalhos. “Quando eu comecei a Baggios, eu tinha 17 anos. Não tinha emprego, tinha acabado de sair do colegial. Quando a gente começou a tocar, vimos a necessidade de manter o projeto vivo e para isso, juntamos um caixa de 300 reais para gravar o primeiro EP em 2006, dinheiro dos shows que a gente fazia”.


Em 2008, eles começaram a tocar em festivais, como o extinto Projeto Verão em Aracaju, que dispunha de mais recursos para pagar melhores cachês. “Ali eu me dei conta de que a gente ia precisar de grana pra poder gravar um disco, comprar equipamento e tal… Daí a gente sempre deixou uma grana no caixa da banda. Turnês, videoclipes são sempre financiados com esse dinheiro”. Julico ainda afirma que tal medida é necessária para a sobrevivência das bandas, já que as políticas públicas de cultura são deficitárias.


Frente às dificuldades de financiamento, o guitarrista ressalta a importância do empreendedorismo no ramo: “a banda é de certa forma uma empresa, tem que encarar como algo sério, que você vai investir e lucrar, mesmo que seja pouco”. Essa visão de independência ajuda o grupo a ter controle sobre todo o processo de produção e divulgação do trabalho, sem qualquer interferência de investidores ou das gravadoras.

O primeiro disco, de 2011, chegou a ser gravado por um subselo da gravadora Deck, o Vigilante, sendo a única experiência da banda com gravadoras, que tinham muito mais força em outros tempos e dominavam o mercado musical. O “Sina” também deveria ser gravado pela Deck, porém o projeto não se concretizou: “as composições do Sina estavam prontas desde 2012, mas o disco acabou não saindo porque a gravadora tinha outras prioridades e outros nomes que eram mais rentáveis para eles”, lamenta Julico.


As turnês são um dos principais instrumentos para disseminar o trabalho. Nesse contexto, a Baggios fez parte da rede de artistas que atuava dentro do Fora do Eixo, criando intercâmbios entre artistas das diferentes localidades do país. Enquanto a dupla produzia shows de artistas de outros estados em Aracaju, eram abrigados por esses quando tocavam fora do estado. “Vários amigos que a gente fez numa das primeiras turnês pelo Sudeste, com Porcas Borboletas e Aeromoças & Tenistas Russas, são nossos amigos até hoje. Então a rede ajudou a gente a mapear as bandas pelo Brasil, proporcionando a circulação e o intercâmbio”, explica Perninha.


Foto: Alisson Mota

EP, Europa 2018 e disco novo (sim, já)


Apesar das indicações ao Grammy Latino, ao Prêmio Bravo! e ao Prêmio APCA, o trabalho de divulgação do Brutown ainda está longe de acabar. Mais shows estão nos planos do conjunto, que almeja pisar em solo europeu em 2018, e a produção de novos clipes também norteia o futuro próximo. Duas músicas do álbum já ganharam videoclipes. Em novembro de 2016 a canção Como Um Tiro de Bacamarte ganhava vida em formato audiovisual. Quase um ano depois, em setembro, foi a vez de Soledad virar clipe. O desejo da dupla é que mais produções do tipo ocorram. Julico revelou que pensou o disco como um filme, onde tal potencial narrativo tem sido bem explorado com a produção dos videoclipes. Ainda no embalo de Brutown, um disco com músicas que ficaram de fora do álbum será lançado. As canções inéditas serão distribuídas através de um EP, com previsão de lançamento para novembro deste ano. Além da distribuição através de plataformas via streaming, uma versão física em vinil compacto também está sendo viabilizada.


Com tudo isso em mente, o grupo já inicia um planejamento para o próximo álbum. Julio transcreve algumas de suas inquietações em forma de música e compartilha com os parceiros visualizando um novo projeto. “Minha cabeça de compositor é ativa o tempo todo, então, eu estou sempre gravando ideias em casa, vou organizando algumas coisas. A gente já gravou algumas demos novas, mas coisas sem muita pretensão. Foi umas ideias que eu tive, mostrei pra Perninha, pra Rafael, a gente foi gravando, mas a gente já percebe que tem uma linha nova seguindo ali”. A gravação do novo trabalho está prevista para 2018.


No futuro mais próximo, a banda tem shows marcados em Vitória da Conquista-BA e em Aracaju, além de apresentações com projetos paralelos dos integrantes em bares da cidade. “Fizemos uma turnê pelos Estados Unidos e Canadá, agora vamos fazer uma turnê pelos bares de Aracaju”, brinca Julico. Essa realidade é paradigmática, pois confronta o reconhecimento do trabalho à recompensa. Ainda que sejam indicados ao Grammy, os músicos ainda não conseguem se manter unicamente do trabalho da banda, ainda que seja a principal fonte de renda. Mas nada mal pros “ratos de show na ATPN” que tocavam rock num amplificador da Xuxa, né?


Ouça The Baggios:


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