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Ressignificar para existir: O legado do Fasc

  • Acorde
  • 11 de dez. de 2019
  • 4 min de leitura

Um festival numa cidade histórica tal qual São Cristóvão tem muito mais a proporcionar do que somente suas atrações

por Alisson Mota


Selváticas no palco João Bebe Água. Foto: Felipe Goettenauer | @fgoette

Há quase um mês, as expectativas em torno do Festival de Artes de São Cristóvão, o Fasc, começavam a ganhar as ruas da cidade. Entre os dias 14 e 17 de novembro, o Centro Histórico foi tomado por manifestações culturais de diversas origens, significados e, sobretudo, públicos.


Algo curioso aconteceu no sábado do festival, durante a tarde. Enquanto acontecia a apresentação do Projeto Passe, de Dudu Prudente, no Beco do Amor, o Grupo de Chegança Feminina AMI, da cidade-mãe, passou com seu cortejo na rua em que acontecia a apresentação do músico da capital. Dá pra observar, só nesse caso, quebras de paradigmas envolvendo as duas apresentações.


São Cristóvão é uma cidade histórica, a 4ª mais antiga do Brasil, com população que hoje é proporcionalmente pequena e que ainda conta com pouca penetração de artes experimentais, derivadas de influências estrangeiras e da tecnologia. Essa definição consegue contemplar a arte produzida por Dudu Prudente, observada com atenção e até com estranheza por quem participava do cortejo. Dudu direcionou um dos microfones utilizados na sua apresentação para captar os sons dos pandeiros, apitos e cantigas da Chegança.


Por outro lado, o cortejo também trazia sua carga de inovação. Basta lembrar das origens da Chegança, que remetem ao período colonial em Sergipe, sendo forjada a partir dos confrontos entre cristãos e mouros na Península Ibérica. É portanto uma manifestação de caráter bélico, trazida pelos colonizadores. Ao passar do tempo, a população de Sergipe, sobretudo em São Cristóvão, se apropriou e ressignificou a manifestação. Exemplo disso é que hoje existe um grupo exclusivamente feminino de Chegança na primeira capital, algo impensável desde as primeiras apresentações por aqui, lá pelo século XIX, até pouco tempo atrás.


Esses exemplos buscam localizar o que significa a realização de um festival do tamanho do Fasc, que tem apelo de renomados artistas nacionais, como todo grande festival que se preze, num Centro Histórico como é o de São Cristóvão. A cidade foi uma fortaleza construída pelo portugueses na época da dominação sangrenta do território sergipano. As igrejas, localizadas na parte alta da cidade, serviam como fortes e mirantes para prevenção dos ataques dos franceses e holandeses na época.



Todo aquele conjunto arquitetônico foi idealizado pelos portugueses. Estes comandados na região por Cristóvão de Barros, que liderou um enorme etnocídio nas terras que hoje correspondem a Sergipe e que dá origem ao nome da cidade de São Cristóvão. A cidade foi construída sob suor e sangue dos negros e dos indígenas, escravizados pelos colonizadores, e que deram origem a maior parte da população sancristovense. Toda a história de glórias da colonização é na verdade uma história de sofrimento e perdas para o povo nativo e a população negra.


Eis que séculos depois, com a realização do Fasc, o mesmo local que foi sinônimo do poder violento dos colonizadores e da igreja, passa a ser ocupado intensivamente pelos descendentes daqueles que mais sofreram na história e que sempre foram renegados, simbolizando atraso. Apresentações culturais e manifestações religiosas de matriz africana, corpos que transitam na cidade expressando sua identidade. São inúmeros exemplos de como essa ocupação cultural ajuda a mudar a realidade concreta.


Isis Broken, domingo de Fasc, no palco Frei Santa Cecília. Foto: Felipe Goettenauer | @fgoette

O Fasc é, antes que um enorme festival de cultura e artes, é ressignificação dos espaços e de resgate do que é a verdadeira história do nosso estado. O festival consegue reunir novos e velhos paradigmas, apontando novas sínteses, como o microfone apontado por Dudu para a Chegança. E isso significa muito mais do que qualquer grande banda que toque no maior palco do festival.


É ver o show de Afrocidade e ouvir coisas que já deviam ter sido ditas há muito tempo, que dialogam diretamente com a parcela da população que foi renegada na história. Quando indagado sobre a potência do show do grupo, o vocalista José Macedo afirma de bate-pronto: "A diferença é a mensagem que a gente traz. E essa mensagem, com a nossa mistura de ritmos, reverbera no público, principalmente quando é do Nordeste".


Na verdade, a energia que pulsa naqueles quatro dias está sempre ali. É uma força ancestral, que transcende a enganação que por muito tempo os livros de histórias trouxeram. Que ultrapassa a estrutura daquelas construções que por muito tempo foram sinônimo de imposição política e de destruição daqueles que ali habitavam.


A principal atração da edição deste ano, Gilberto Gil, ratifica essa visão. Gil já veio diversas vezes para São Cristóvão. Nas primeiras vezes ainda nas primeiras edições do Fasc, entre os anos 1970 e 80. Posteriormente, já neste século, como ministro da Cultura, fomentando projetos e realizando obras na cidade.


Sábado de Fasc, Gilberto Gil e banda passando o som no palco João Bebe Água. Foto: Alisson Mota | @alissoooooooo

"Estive recentemente em Marechal Deodoro, em Alagoas, que é uma cidade equivalente a São Cristóvão: teve muita importância quando foi capital, mas muito pequena, que hoje se move pelo patrimônio histórico", compara Gil ao lembrar da relação que tem com a cidade.


Contudo, o maior artista vivo do Brasil também ressalta a importância do Fasc, no local onde está situado. "São Cristóvão é uma cidade que vive de história, de cultura. E hoje, para além do patrimônio material, apresenta um rico patrimônio imaterial, como é demonstrado pelo Fasc. Não é pedra nem cal. É música. É cultura. É espiritualidade. Existe uma energia que emana daqui."






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